Quem, como eu, nasceu perto de uma das zonas montanhosas do interior do País, com facilidade atesta da diferença entre o que eram as vivências e paisagens da infância e as dos nossos dias.
A Gardunha tinha pinhal cerrado com caruma que as pessoas apanhavam para fazer a cama dos animais, tinha pinhas e lenha miúda para acender as lareiras, tinha potes de barro a apanhar a resina.
No outono, tinha muitos míscaros e frades e em dezembro cada casa tinha um pinheiro verdadeiro dentro de casa e musgo a servir de base ao presépio para alegrar a quadra.
Os ribeiros tinham lavadouros e a roupa branca punha-se a corar em cima das giestas, para não tocar no chão.
No final dos anos setenta, aconteceu o primeiro grande incêndio que assustou tanto as pessoas que muitas pegaram no dinheiro, no ouro e nos filhos e fugiram para a aldeia vizinha.
No segundo grande incêndio, enquanto ardia a Gardunha ardia também o Chiado. Por aqui não arderam casas, mas a Serra ardeu até ao sopé, atingindo hortas e quintais.
Os fogos ganharam dimensão porque há muito mais combustível, os terrenos passaram a ser desconhecidos dos donos que os herdaram, os braços que ajudavam a apagar fogos com enxadas envelheceram
A partir daí, mais perto ou mais longe, o fenómeno dos incêndios vulgarizou-se, bem como as teorias da conspiração: «são os madeireiros», «querem comprar os terrenos baratos» querem plantar eucalipto», «querem pôr eólicas» …
Com o tempo, as máquinas de lavar entraram em quase todas as casas, a resina deixou de ser recolhida, as camas dos animais que restaram passaram a ser forradas a palha. Ao pinhal, que passou a nascer espontânea e desordenadamente, juntaram-se os eucaliptos, as acácias, as estevas, o palhiço.
Os fogos ganharam dimensão porque há muito mais combustível, os terrenos passaram a ser desconhecidos dos donos que os herdaram, os braços que ajudavam a apagar fogos com enxadas envelheceram.
No Colégio de S. Fiel, em Louriçal do Campo (uma aldeia no sopé da Serra da Gardunha), no início de século XX, pela mão dos padres jesuítas que o dirigiam, nasceu uma revista de divulgação científica chamada Brotéria, onde se podem encontrar descrições detalhadas de como era a fauna e a flora destes sítios. Na sua edição no 1910, consta um artigo sobre a quase inexistência de vegetação:
«Primeiro os matteiros carvoeiros ou lenhadores, depois dente damninho dos gados foram-lhe destruindo arruinando os mattos pastagens que, além de enriquecerem solo com os seus detritos, serviam como de freio defesa contra impetuosidade devastação dos agentes externos, segurando, sobretudo com seu raizame, camada terrea que envolvia as massas graníticas. Iloje quasi nada resta daquella vegetação, que revestia outr’ora aquelles sitios até aos pincaros encostas mais íngremes. Nem rosmaninhos, estevas, sargaço ou carquejas, nem as giestas.»
Por achar que o uso que os moradores faziam da vegetação era prejudicial, M. Martins, o autor do artigo, mostrava entusiasmo pelo regime florestal parcial daquela área, em que se viria a introduzir o pinheiro e o eucalipto.
O que é obvio para a academia, para os que combatem incêndios há décadas, para alguns decisores, tem de ser também a aposta dos proprietários, de todos os autarcas, dos governos nacionais e internacionais: é necessário alterar a paisagem
Passado mais de um século, as espécies florestais introduzidas ou infestantes, o uso humano (ou a sua falta) e as condições climatéricas adversas, criam o combustível para os incêndios de sexta geração: longos períodos de tempo seco, muita matéria inerte, floresta desordenada e constituída maioritariamente por resinosas.
Como resposta, os meios de combate a incêndio diversificaram-se e multiplicaram-se, as articulações no combate a incêndios passaram a ser transnacionais, mas nenhum destes fatores pode ser elevado a uma potência infinita.
O que é obvio para a academia, para os que combatem incêndios há décadas, para alguns decisores, tem de ser também a aposta dos proprietários, de todos os autarcas, dos governos nacionais e internacionais: é necessário alterar a paisagem.
A propriedade que temos hoje é mais ameaça que rentabilidade, mais desesperança que modo de vida.
Na última intervenção na Assembleia da República, o Ministro do Ambiente afirmou: «Não podemos ter monoculturas florestais a ocupar vastas áreas do nosso território, sem interrupções e sem mosaicos. É por isso que estamos a executar o Programa de Transformação da Paisagem, que inclui quatro medidas programáticas: os Programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem; as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem; os Condomínios de Aldeia e o Programa “Emparcelar para Ordenar”.»
Este mês, no incêndio de Proença a Nova, ficou evidente a eficácia dos Condomínios de Aldeia e da cultura em mosaicos onde ela já existia. É evidente que os quase sete mil hectares de área ardida nos deixam sem alento (mais uma vez) mas desistir não é, de todo, opção.
A opção é uma reforma da paisagem que tenha como ponto de partida o saber, planeamento, apoio financeiro, tempo e gente. Ou seja, precisa de envolver a academia, os decisores, fundos nacionais e europeus, um acordo de regime e novos moradores.
Agricultura e Mar