Artigo de opinião de Afonso do Ó, Consultor em Água da ANP|WWF
A agricultura de regadio é uma inevitabilidade (e uma necessidade) na região mediterrânica em que vivemos, em que a estação seca coincide com a estação quente. Este facto natural levou desde há milénios ao desenvolvimento de sistemas de rega na região, colmatando a falta de água no período em que as plantas dispõem de mais luz e calor.
Em Portugal, tem-se assistido na última década a uma expansão dos sistemas de regadio, associados a uma agricultura intensiva e extrativista de cariz comercial e predominantemente exportador. A delapidação e degradação dos recursos naturais e ecossistemas causada por estes novos regadios tem sido aceite pela sociedade, dada a “sede natural” destes sistemas (em beber e em não parar de crescer), e a perceção de que sem água para regar não é possível haver vida nem economia rural.
Para além da ocultação dos seus impactos ambientais severos, nomeadamente ligados à exaustão dos solos, à perda de biodiversidade, e à contaminação e fragmentação dos rios, o debate público tem sido inquinado por várias confusões: entre soberania alimentar e expansão de monoculturas agroindustriais, entre sustentabilidade dos sistemas agrícolas e o seu necessário contributo para o PIB e a balança comercial, entre adaptação às alterações climáticas e maior vulnerabilidade aos riscos naturais (nomeadamente à seca e escassez).
A verdade é que ninguém que conheça a realidade da região mediterrânica pode pôr em causa a necessidade de preservar, modernizar e, onde houver água suficiente, expandir os regadios. No entanto, é urgente contextualizar essa expansão: ela só deve ser possível onde haja capacidade de solos, disponibilidades hídricas e reduzido risco de escassez. Este deve ser medido como o balanço médio entre oferta e procura de água, mas em anos secos (cada vez mais frequentes e intensos) e não em anos médios – isto porque é a única forma de garantir aos agricultores que têm acesso à água de que precisam todos os anos, e não apenas quando chove a sério (como sabemos, cada vez menos vezes).
É que devemos ter em conta que o setor agrícola é o primeiro a sofrer limitações e cortes nas disponibilidades de água em situações de seca – logo, o setor deve assumir esse risco e não ir para além das limitações expectáveis nessas situações, cada vez mais frequentes. Expandir regadios fora dos territórios que garantem essa disponibilidade de água (e de solos, não esquecer), é condenar os agricultores à precariedade, e a sociedade no geral ao pagamento de indemnizações compensatórias a uma atividade que quase nunca tem seguro.
Este princípio geral de sustentabilidade não implica de todo que seja o Estado a definir onde é que cada agricultor cultiva o quê; mas implica dizer até onde é que o Estado (nós todos, recorde-se) cobre eventuais prejuízos, e onde não deve correr esse risco, construindo mais infraestruturas e incentivos ao setor em territórios sem a capacidade de sustentarem mais regadios. Os incentivos públicos devem antes seguir o adágio popular de “não pôr os ovos todos no mesmo cesto”, e diversificar a produção num território: ou seja, os perímetros de rega não devem ser monoculturas com elevado risco e exposição às flutuações de mercado, devendo antes ser complementados com outras culturas, áreas de sequeiro, e zonas de conservação que assegurem o funcionamentos dos serviços de ecossistema que garantem os ciclos naturais do solo, da água e da biodiversidade – os ciclos que sustentam toda a atividade agrícola, e a vida de todos.
Agricultura e Mar