Artigo de Opinião de:
Hugo Metelo Diogo, Director, Compta (Especialista em transformação digital da Economia do Mar)
Ana Cristina Ribeiro, Manager, Compta (Especialista em experiência do cliente e relação de mercado)
A Lavoura dos Oceanos
A mudança do paradigma da exploração dos recursos para uma nova Era onde o futuro da Humanidade estará dependente da nossa capacidade em “cultivar os oceanos” está intrinsecamente relacionada com a nossa capacidade em superar um conjunto de barreiras tecnológicas que estão na premissa da “colonização dos mares”. Tal como o escritor açoriano, Daniel de Sá disse um dia que “A nossa lavoura futura será no mar”, estaremos nós no caminho desse futuro?
De acordo com as Nações Unidas “mais de três bilhões de pessoas dependem dos recursos marinhos e costeiros para o seu sustento”. Os mares e os oceanos são os principais reguladores do clima global e, em conjunto com as zonas costeiras, formam uma componente integrada e essencial do ecossistema da Terra. As características destes territórios revestem-se de toda a importância para o desenvolvimento sustentável da humanidade, através da capacidade de geração de alimento e postos de trabalho que, de igual modo, contribuem quer para a irradicação da fome quer da pobreza.
Sobre o pretexto de gerar emprego e satisfazer a procura global por proteína animal, no último século, fomos assistindo a uma industrialização do sector das pescas, tal como, a sua expansão para os cantos do oceano. Este fenómeno de expansão em muito se deveu a um sucessivo incremento da precisão das pescas induzido por significativos avanços tecnológicos. No entanto, a sobre-exploração comercial das reservas de peixes do mundo é grave “, disse Ban Ki-moon em 2012.” Muitas espécies foram capturadas restando pequenas fracções das suas populações originais. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), 85% das reservas globais de peixes estão “sobre-exploradas, esgotadas ou a recuperar do esgotamento”. Mesmo assim, em todo o mundo, todos os dias, a indústria das pescas rejeita mais de sete milhões de toneladas de vida marinha capturada acidentalmente – só no caso da pesca do camarão, 80% de tudo o que é capturado é rapidamente convertido numa forma de extinção marinha massiva.
Durante décadas, os ambientalistas lutaram para salvar os oceanos dos perigos da sobre-pesca, das mudanças climáticas e da poluição. No entanto, a questão não se coloca em como é que nós podemos salvar oceano, mas sim, em como é que os oceanos nos podem salvar?
Até 2050, as Nações Unidas estimam um crescimento da população mundial em mais de 2 biliões, pese embora a demanda global por alimento venha a representar o dobro dos números que são hoje conhecidos, numa altura em que a Global Salmon Initiative preconiza o colapso das pescas. Estarão os mares e oceanos em condições de erradicar a fome e a pobreza? Não nos parece! Não nos parece que isso venha a ocorrer se, perante os mares e os oceanos, nos mantivermos como “caçadores”.
We must plant the sea and herd its animals using the sea as farmers instead of hunters. That is what civilization is all about – farming replacing hunting.
Jacques Yves Cousteau, Filmmaker & Scientist
Estima-se que, em 2050, a população mundial terá crescido para mais de 9 bilhões de pessoas. Ao mesmo tempo, o aumento da urbanização e do poder de compra começam a alterar as preferências alimentares, resultando num aumento crescente de procura de proteína animal. Se se mantiverem as percentagens de consumo de peixe de 17 quilos anuais per capita (Portugal consome 59 quilos anuais per capita), daqui a 30 anos serão necessárias 29 milhões de toneladas de peixe extra às 110 milhões de toneladas já produzidas e capturadas hoje.
Segundo dados da National Geographic, são precisos 3,5 Kg de alimento para produzir 1kg de massa corporal de carne bovina. Comparativamente com a produção de peixes, esta relação apresenta-se bem mais favorável, sendo possível converter aproximadamente meio quilo de alimento em 450gr de peixe. Esta comparação permite-nos compreender qual a medida de utilização de recursos no processo de produção de proteína, colocando a aquacultura na dianteira das soluções para enfrentar o desafio de alimentar a população mundial de forma sustentável.
Aquicultura tratada como a agricultura e a pecuária
Todavia, a aquacultura deve ser reconhecida como um negócio bastante distinto da gestão da pesca selvagem, devendo ser tratado mais como a agricultura e a pecuária, especialmente no que se refere a questões ambientais. Em 2012, Kofi Annan defendia que “A aquicultura oferece uma solução cada vez mais atraente para satisfazer as necessidades alimentares”, mais acrescentou que “apesar de ser o sector de produção de alimento mais rapidamente cresce, o seu potencial de expansão é ainda maior”. Assim depreendemos que do muito “mar para cultivar” se ergue um novo paradigma de lavoura: – a lavoura dos oceanos.
A aquacultura não é uma inovação moderna. Há milhares de anos e civilizações atrás que povos como os egípcios, romanos, astecas e chineses “cultivaram” peixes, moluscos e plantas aquáticas. O salmão atlântico foi cultivado na Escócia desde o início do 1600. A nova “revolução azul” trouxe consigo muitas das chagas da agricultura: destruição dos habitats, poluição da água e receios do consumidor relativamente à segurança alimentar. O problema não é a arte antiga da aquacultura per se, mas sim a rápida intensificação da mesma.
Por exemplo, os chineses começaram a criar carpas nos seus campos de arroz há pelo menos 2.500 anos. Mas com uma produção de 42 milhões de toneladas anuais, esse país rapidamente passou da arte ancestral aquícola, para dar lugar à produção massiva e em elevadas concentrações de espécies de rápido crescimento como as carpas e as tilápias.
A China possui um quinto da população mundial, no entanto, de acordo com a FAO, contribui com um terço da captura mundial de peixe e dois terços da produção mundial de aquicultura. O crescimento económico na China tem impulsionado um aumento no consumo de produtos da pesca. O consumo per capita nas cidades chinesas aumentou de 10,34 kg em 2000 para 14,62 kg em 2011. A China é hoje, simultaneamente, a maior potência das pescas, o maior produtor de aquicultura e o maior exportador líquido de produtos de peixe. Em termos comparativos, usando dados da OECD, em 2015 a produção de pescado da china rondou os 32,4 milhões de toneladas, 10 vezes mais que a do segundo país, a Índia, que declarou 2,8 milhões de toneladas.
Pese embora todo o potencial do sector e a assumpção de que a aquacultura pode alimentar a população mundial de forma sustentável, o rápido crescimento da produção intensiva de espécies de alto valor comercial destinadas à exportação, como salmão e camarão, já causou danos ambientais irreparáveis e consequentes fluxos migratórios de pescadores e aquicultores cujos meios de vida foram destruídos.
Métodos de produção intensivos
Os métodos de produção intensivos libertam enormes quantidades de resíduos orgânicos e de água contaminada no ambiente natural que circunda uma unidade produtiva. De acordo com a associação ambientalista “Slow Fish”, todos os dias, todas as produções de salmão na Escócia produzem tantos resíduos quanto os 600.000 habitantes de Edimburgo. Recentemente, a Noruega, o principal produtor aquícola europeu, começou a requerer o suporte da comunidade científica para combater a proliferação de parasitas como as pulgas-do-mar, consequência dos impactos das produções intensivas.
A sustentabilidade ecológica e a viabilidade económica continuam a ser os dois pesos que teimam em não equilibrar a balança. A obtenção de lucro – em constante conflito dentro da comunidade – é tão destrutivo para a sobrevivência da aquacultura como uma relação harmoniosa com a natureza e a sociedade, mas sem viabilidade financeira. Obter lucro é, obviamente, um ingrediente chave para o sucesso de qualquer negócio e é o que mantém nosso motor económico em funcionamento.
De uma forma ou de outra, podemos afirmar que o conhecimento, as organizações e os instrumentos existentes não estão suficientemente maturados para que o sector das pescas ou o sector aquícola possam intensificar a sua resposta à demanda global por proteína sem sinais de falência de pelo menos um dos pilares da sustentabilidade. Estamos certos de que a resposta responsável a este desafio virá com a intensificação da produção, ao invés da captura de pescado e na articulação entre os actores políticos, económicos e os do conhecimento.
Sobre os actores económicos deve recair a responsabilidade da razoabilidade ao nível das suas exigências à sociedade, devendo estar internamente vigilante para promover e manter práticas empresariais responsáveis, levando a sério a necessidade de gerir e mitigar os impactos ecológicos e comunitários das práticas de cultivo e extracção. Acreditamos na necessidade de valorizar a interligação da “literacia azul” com a “literacia digital” como estratégia para a capacitação do factor humano que pensa, opera e gere o sector aquícola; e na transformação digital, visando a implementação de modelos de produção e de negócio, tecnologicamente assistidos, para guiar a actividade económica de forma eficiente em termos produtivos e eficaz no encontro dos valores do carbono neutro ou carbono negativo.
Regulamentação e burocracia
Ao nível político é importante que que se entenda que o número elevado de entidades regulatórias e uma lenta burocracia governamental não são resposta, uma vez que matam o espírito empreendedor tanto quanto uma depressão económica ou um tumulto social. Não é uma coincidência que o mercado de capitais reaja às mudanças na política governamental, porque os investidores sabem que fazer negócios numa região ou país é fortemente influenciado pelo clima político. É, por isso, necessária uma abordagem de “governação inteligente”, suportada por instrumentos de monitorização e sistemas cognitivos capazes de promover capacidades aumentadas aos actores da governação. Acreditamos, assim, que os governos europeus devem levar a sério o investimento na vigilância ambiental dos oceanos, bem como dos impactos da intensificação das actividades económicas. Este caminho exigirá investimentos públicos, não só em infraestruturas governamentais, mas sobretudo em subvenções e incentivos fiscais que estimulem o sector privado à mudança.
Sobre os actores do conhecimento deverá cair a responsabilidade de ousar o desconhecido e desbravar a incerteza na procura de resposta para os problemas concretos que assolam a humanidade. O combate a três frentes – pobreza, fome e preservação dos ecossistemas naturais – precisa de uma abordagem pragmática das academias e centros de investigação, encontrando instrumentos para combater os problemas sem esquecer a importância das organizações privadas em visar o lucro. Destacam-se áreas como de investigação que incidam na capacidade de dominar todo o ciclo de produção de espécies; e na inovação tecnológica em termos de sistemas de monitorização, controlo e suporte à decisão inteligente, capazes de apoiar produtores e reguladores na intensificação das suas práticas.
Finalmente, é determinante premiar as boas práticas. Por exemplo, em 2015, nos Estados Unidos, o pescador comercial que admitiu ter pilhado os oceanos, Bren Smith, CEO da GreenWave, levou para casa 100 mil dólares de um concurso de ideias para a sustentabilidade, apresentando um modelo de cultivo oceânico 3D, projectado para combater a sobre-pesca, mitigar as mudanças climáticas, restaurar os ecossistemas marinhos e proporcionar empregos para os pescadores. O sistema vertical de cultivo oceânico só produz cultivos restauradores, como algas e crustáceos, para produzir alimentos, fertilizantes, alimentos para animais, cosméticos e biocombustíveis. Cada espécie é cuidadosamente seleccionada para tratar de um determinado desafio ambiental, como a fixação de excesso de nitrogénio, no caso de ostras, ou algas marinhas, que absorve o dióxido de carbono. Ciente da importância de replicar o modelo em todo o mundo, a GreenWave criou um modelo “Open Source” onde todo o conhecimento é disseminado, com o objectivo de treinar uma nova geração de aquicultores para a implementação de modelos de produção com impactos ambientais restauradores.
Neste sentido, há que investir para vencer o desconhecido. Há que apostar na miragem de neutralizar o carbono, há que premiar os ousados, há que difundir o conhecimento, há que apostar na modernidade tecnológica. E estes devem ser os princípios para alinhar as comunidades políticas, científicas e económicas em torno de um pensamento progressista e solidário rumo ao novo futuro da “lavoura dos oceanos”.
Os Autores
Hugo Metelo Diogo
Com formação nos domínios das ciências da informação e comunicação, conta com mais de vinte anos de experiência profissional no sector tecnológico, dos quais, a última década dedicado a processos de transformação digital em diferentes sectores da Economia do Mar. Exerceu funções de consultor Comissão Europeia nos domínios na segurança marítima e eficiência portuária. Esteve envolvido em diversos vários projectos internacionais de grande escala com impactos globais no sector dos portos, transporte marítimo e gestão de recursos hídricos. Foi Diretor da Glintt Inov responsável pelo primeiro centro de excelência empresarial para a Economia do Mar, reconhecido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Actualmente, é director da Compta, responsável pelo desenvolvimento de negócio e investigação e desenvolvimento tecnológico nos domínios técnicos e científicos da Economia do Mar.
Ana Cristina Ribeiro
Licenciada em Engenharia Química, com diversas especializações em marketing e eficiência de processos, desde cedo que dedicou a sua missão profissional a apoiar as organizações na sua relação com o mercado. Soma uma experiência de mais de três décadas maioritariamente passadas em multinacionais de domínios de negócio tão variados como como as indústrias petrolíferas, saúde, grande consumo, telecomunicações e tecnologias de informação. Em 2013, assumiu a posição de Gestora de Relações Internacionais da Glintt Inov onde, liderou diversos projectos internacionais de investigação e desenvolvimento aplicada ao sector portuário, indústria naval e gestão de recursos hídricos. Actualmente é responsável pela gestão das relações externas do departamento de economia do Mar da Compta e gestora do consórcio Aquatropolis.
Agricultura e Mar Actual