Artigo de opinião de Ana Soeiro, Directora Executiva da Associação Qualifica/oriGIn Portugal
Conteúdo
1. O caso “Champagnola” 3
2. Lições a retirar 7
Nota 1 – Este texto teve como base um documento homónimo publicado pelo “oriGIn” em 04.05.2020
Nota 2: A propósito do conceito de evocação ver os textos técnicos:
TT 23 – O conceito de “EVOCAÇÃO” em matéria de protecção das Indicações Geográficas e das Denominações de Origem
TT 34 – O conceito de “EVOCAÇÃO” em matéria de protecção das Indicações Geográficas e das Denominações de Origem – o caso Glen Buchenbach
TT 35 – O conceito de “EVOCAÇÃO” em matéria de protecção das Indicações Geográficas e das Denominações de Origem – o caso Manchego
TT 39 – Protecção das DOP, das IGP e das IGs contra a “evocação”
(1) Todos os textos técnicos podem ser obtidos no site www.qualificaportugal.pt
1. O caso “Champagnola”
O caso “Champagnola” é outra decisão importante que esclarece a extensão do conceito de evocação em relação às IGs(2).
A 17 de Abril de 2020, a Câmara de Recurso do Gabinete Europeu de Propriedade Intelectual (EUIPO) publicou uma decisão importante sobre o conceito de evocação em relação às IG.
A situação, em síntese, foi a seguinte:
Em 2017, uma empresa checa apresentou o pedido de registo da marca nominativa “Champagnola”, como marca da União Europeia (EU TM) nº 16.471.922.
Rejeitado o pedido para a classe 43 (Serviços de restauração e alimentação), foi o mesmo pedido publicado para oposição nas classes 30 (Pão, pastelaria e confeitaria …) e 40 (padarias, produção de produtos de panificação e confeitaria semiacabados e panificação, serviços de panificação e serviços relacionados…).
No mesmo ano, o Comité Interprofissional do Champagne (4) opôs-se ao registo com base:
– no Regulamento UE sobre o registo de marcas (5) (artigo 8.6) (6),
– nas disposições dos regulamentos da UE sobre IGs, e
– no direito nacional francês.
O nome “Champanhe” está reconhecido como DOP nos termos do artigo 107.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1308/2013 (7).
Em 2019, a Divisão de Oposição do EUIPO rejeitou a oposição; como consequência, o Comité Interprofissional do Champagne interpôs um recurso contra a rejeição do EUIPO.
Com a decisão de 17 de Abril, a Câmara de Recurso finalmente confirmou a oposição inicial do Comité Interprofissional do Champagne e declarou que o pedido de registo da marca europeia, objecto de contestação, deve ser rejeitado para todos os produtos e serviços das classes 30 e 40, porque “Champagnola” representa uma evocação da DOP Champagne.
As razões apresentadas pela Câmara de Recurso são extremamente interessantes, porque esclarecem, mais uma vez, a extensão da evocação de IGs no quadro jurídico da UE
Em primeiro lugar, a Câmara de Recurso afirmou que a Divisão de Oposição interpretou erradamente as disposições do Regulamento nº 1308/2013 (8) , designadamente as do seu artº 103º.
Esse regulamento confere protecção contra a utilização em produtos idênticos ou contra a evocação de nomes protegidos, tanto em relação a produtos comparáveis (vinho no presente caso) como em outros produtos e serviços que não sejam comparáveis ao que tem o nome protegido, apenas quando o sinal contestado explorar a reputação dos nomes protegidos (9).
A decisão da Divisão de Oposição, impugnada pelo Comité Interprofissional do Champagne, cometeu um erro ao relacionar a evocação com uma avaliação da comparabilidade de bens e serviços.
A evocação pode ser estabelecida com relação a bens comparáveis e não comparáveis (ou mesmo com relação a serviços).
É impróprio misturar essa condição com considerações que corresponderiam à “relação entre as mercadorias” nos termos do artigo 8 (5)(10) do Regulamento da marca da União Europeia (11).
As disposições que fornecem protecção no Regulamento 1308/2013 devem ser lidas da mesma forma que as condições paralelas do artigo 8.º, n.º 5 do mesmo Regulamento da marca da União Europeia, designadamente, que não é necessário provar o uso real, resultando em danos reais ou em prejuízo da reputação da DOP.
Como consequência, ao lidar com uma oposição baseada numa DOP com reputação, a exploração dessa reputação não exige o uso real prévio do sinal contestado pelo requerente da marca.
A este respeito, é possível obter orientações a partir da disposição paralela do já referido artigo 8º, nº 5, relativa às vantagens injustas retiradas pela exploração de uma reputação:
Cabe ao titular do direito anterior apresentar provas que permitam concluir que uma lesão é provável , no sentido de que é previsível no curso normal dos eventos.
No entanto, deve haver evidência prima facie de um risco futuro, que não é hipotético, de que uma lesão ocorrerá, com base em deduções baseadas numa análise das probabilidades e levando em consideração a prática normal também no sector comercial relevante, tal como em todas as outras circunstâncias do caso.
2. Lições a retirar
a) Mesmo em organismos altamente especializados e com técnicos reconhecidamente competentes, podem existir erros de apreciação;
b) É da maior importância estar atento aos pedidos de registo de quaisquer outras figuras da Propriedade Intelectual (outras IGs ou outras DOs, marcas, marcas colectivas, marcas de garantia ou de certificação, logotipos, patentes, etc.) que possam, de alguma forma, lesar os legítimos interesses das IG e das DO já registadas (12).
c) É do maior interesse que os Agrupamentos de Produtores gestores de IGs e ou de DOs exerçam os seus direitos e apresentem oposição às tentativas de registo que os possam prejudicar.
d) Como se verificou no caso em apreço, não é fiável pensar que as “autoridades” não permitem registos que possam causar danos a outrem.
e) Os Agrupamentos devem estar preparados – técnica e financeiramente – para arrostar com os custos, sendo óbvio que esta oposição tem custos…em tempo, em dinheiro e em paciência.
f) Ainda que não possam ser dadas garantias, é entendimento geral que vale a pena protestar e persistir no protesto!
g) As últimas decisões do TJUE – ainda que com duas excepções tristemente célebres (13) – têm vindo a dar razão aos legítimos utilizadores das IG ou das DO, designadamente em matéria de evocação
h) Devia ser seguido o exemplo do EUIPO, que se dotou de órgãos colaterais (neste caso a Câmara de Recurso), pelo que não são os mesmos órgãos/os mesmos técnicos ou a mesma cadeia hierárquica que decidem em primeira instância que são chamados a decidir sobre recursos apresentados pelos cidadãos ou pelas organizações representativas de um determinado grupo de interessados;
i) O conceito de “evocação” tem vindo cada vez a ter maior importância e é possível que “ganhe” maior dimensão jurídica na próxima alteração aos regulamentos IG da UE.