Libertar os rios: o desafio das barreiras fluviais obsoletas em Portugal

Artigo de opinião de José Pedro Ramião, Técnico de Restauro Fluvial da WWF Portugal

No próximo dia 8 de Outubro celebra-se o Dia da Remoção de Barreiras (Dam Removal Day), uma data internacional dedicada a refletir sobre o papel das barreiras fluviais (barragens, diques, açudes, etc.) e os benefícios da sua remoção quando já não cumprem nenhuma função. Mais do que um momento simbólico, este dia é um convite para reconhecermos os desafios e oportunidades que os nossos rios enfrentam e as escolhas que fazemos em torno deles.

A remoção de barreiras fluviais obsoletas devolve vida aos rios. Ao permitir a circulação livre da água, dos sedimentos e das espécies aquáticas, restabelece-se a continuidade natural dos ecossistemas: aumentam-se as áreas de habitat disponíveis, facilita-se a migração de peixes e outros organismos e reforçam-se processos naturais que sustentam tanto a biodiversidade como os serviços de que as pessoas dependem, incluindo a alimentação das zonas costeiras pelos sedimentos fluviais. Não é por acaso que, nos últimos anos, já foram removidas milhares de barreiras em toda a Europa, num movimento que cresce de forma consistente e que Portugal começa agora a integrar. Este esforço ganha agora um novo enquadramento com a Lei do Restauro da Natureza, recentemente aprovada pela União Europeia, que estabelece como meta libertar 25 mil quilómetros de rios na UE até 2030.

Para cumprir esta ambição, é essencial reconhecer que a remoção de barreiras, embora fundamental, levanta também desafios complexos. Muitas barreiras continuam a desempenhar papéis importantes, seja no abastecimento de água, no controlo de cheias e secas, na criação de zonas de lazer, na preservação de valores culturais ou até na manutenção de habitats aquáticos em regiões áridas. Em alguns casos, estes efeitos positivos assumem até formas inesperadas, como o papel de certas barreiras na contenção da proliferação de espécies invasoras. Por isso, a remoção não pode ser uma decisão automática, exige avaliação científica, diálogo com comunidades e ponderação dos custos e benefícios.

A WWF Portugal, com o apoio do Open Rivers Programme, tem vindo a trabalhar neste equilíbrio. Em 2023, em parceria com o município de Alcoutim, removemos o açude de Galaxes, na ribeira de Odeleite, a primeira remoção impulsionada pela sociedade civil em Portugal. Em 2024, foi a vez do açude de Perofilho, no rio Alviela, cuja remoção reabriu 2,5 km de conectividade fluvial, beneficiando espécies como a boga-portuguesa e a enguia-europeia.

Noutros casos, como nos rios Sabor e Sousa, e nas Ribeiras do Vascão e de Oeiras, a realidade mostrou-se mais desafiante. Identificar proprietários foi um processo moroso, muitas comunidades manifestaram resistência e, em alguns açudes, a remoção revelou-se inviável por razões sociais, patrimoniais ou até ecológicas. No sul do país, onde a disponibilidade de água é mais limitada, predomina a perceção de que os açudes são indispensáveis para a retenção de água, mesmo quando o assoreamento já compromete essa função. Estas experiências ensinam-nos que a remoção de barreiras exige tempo, diálogo e realismo, e que cada caso deve ser avaliado com cuidado.

É esta visão equilibrada que deve guiar a celebração do Dia da Remoção de Barreiras. Remover barreiras obsoletas é uma ferramenta poderosa para restaurar os nossos rios, que será ainda mais robusta se combinada com outras (como o restauro ecológico) e se priorizada para os locais onde é mais necessária. É preciso selecionar cuidadosamente os casos em que os benefícios ultrapassam claramente os impactos e onde as comunidades podem ser parte ativa do processo. Só assim conseguiremos remover progressivamente as barreiras culturais à remoção das barreiras físicas, e construiremos rios mais livres, saudáveis e resilientes, não apenas para a natureza, mas também para as pessoas que deles dependem.

Agricultura e Mar

 
       
   
 

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