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“Deixa arder que é mato”

Artigo de opinião de Vasco da Silva, Coordenador de Florestas e Biodiversidade da ANP|WWF

Ano após ano em Portugal o pensamento comum diz que quando há incêndios, os matos são a principal fonte de combustível para a sua deflagração pois são responsáveis pela maior fatia da área ardida. Esta narrativa sustenta a ideia de que as áreas de matos, improdutivas, agrestes, ou mesmo lugares de vazadouro, devem ser limpas e dada uma utilidade, solução que normalmente passa pela plantação e conversão em floresta, uso este que por si ocupa cerca de 1/3 da área do nosso país.

Em tempos idos, os matos foram uma fonte importante de combustível para cozinhar e aquecimento, e para servir de alimento e cama para o gado. Hoje em dia uma área de matos transmite um sentimento negativo ao cidadão comum, seja urbano ou rural, pelo risco de incêndio associado.

De facto, as formações arbustivas (de matos e povoamentos jovens), pela sua densidade e carga contínua de combustível fino têm um grande papel na propagação de um incêndio.

Mas vamos aos dados. De acordo com o Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais do ICNF, os povoamentos florestais são a classe de uso do solo que mais ardeu na última década, em média, com 7628 hectares de área ardida, em comparação com os matos (6655 ha) e área agrícola (914 ha). Se recuarmos nos últimos 20 anos, mais de 50% da área ardida é floresta.

Acresce ainda que parte das áreas ardidas classificadas como matos são, efetivamente, povoamentos jovens de espécies exóticas, como no recente incêndio em Murches, Cascais, em que arderam 95 ha de pinheiro-de-alepo denso. Um pinhal jovem não tem estrutura para ser classificado como floresta, mas muito menos pode ser considerado um mato, no sentido da sua composição e função – os matos são ricos em espécies, e suportam comunidades de insetos, aves e mamíferos.

Ao contrário da floresta, os matos são o coberto vegetal que menos valor se lhe atribui, seja no uso direto – valor de paisagem, cultural – e uso indireto – refúgio de biodiversidade, proteção do solo ou polinização. Contudo, alguns dos produtos florestais não lenhosos são na realidade provenientes dos matos e matagais, como o medronho, a caça e o mel – o bem conhecido mel do Barroso provém de flores de urze. Os matos são também componentes importantes na dieta de pequenos ruminantes, como as cabras em pastoreio de percurso. A vegetação mediterrânica lenhosa é rica em taninos com potencial de melhoria da saúde dos animais (por exemplo pelas propriedades antiparasitárias) e da qualidade do produto final (por exemplo, queijo).

Alguns destes tipos de matos estão classificados de interesse na Rede Natura 2000 porque, para além da importância para a conservação da biodiversidade, geram importantes serviços de ecossistema. No caso do Mediterrâneo, a riqueza de espécies e habitats está associada ao “mosaico” heterogéneo da paisagem constituído por florestas, matos e prados, em que estas últimas formações abertas estão adaptadas a ciclos mais ou menos regulares de pastoreio ou fogo. Com o abandono da atividade agrícola e diminuição do pastoreio, aumentou a acumulação de vegetação combustível  e a severidade dos incêndios.

No modelo de prevenção que se tem vindo a adoptar em Portugal destaca-se a gestão das áreas de matos na prevenção dos incêndios florestais, fazendo incidir uma rede de faixas de gestão de combustível com a finalidade de reduzir a vegetação mais inflamável no território. A limpeza indiscriminada de vegetação, sem reconhecer outros valores como são os variados tipos de habitat de matos, concretamente nas áreas da Rede Natura 2000, está a criar um conflito de gestão entre manutenção do estado de conservação e redução do risco de incêndio.

Em causa está o compromisso dos Estados-Membro em assegurar uma proteção adequada aos habitats e espécies de interesse para a União Europeia. Portugal, tal como os demais Estados-Membros, tem de reportar de 6 em 6 anos o estado de conservação e não fica bem nas últimas fotografias: no Continente a condição dos habitats tem vindo a agravar-se, e o Relatório do Estado do Ambiente mostra que entre os últimos dois períodos de avaliação, os matos em estado favorável reduziram-se em 30%.

Num território que se procura valorizar, as entidades devem orientar a gestão do risco de incêndio mas de forma integrada, em que habitats e espécies classificados sejam salvaguardados. É fulcral manter o investimento continuado na transformação da paisagem para reduzir o risco de incêndio de forma estrutural. Contudo, em áreas com árvores ou matos protegidos o corte da vegetação das faixas de gestão de combustível tem de ser diferenciado e a gestão feita de forma seletiva.

Ao promovermos uma paisagem em mosaico, com habitats em bom estado de conservação e pleno funcionamento, sejam de floresta, matos e pastagens, estamos a criar uma paisagem mais resiliente aos grandes incêndios, evitando a perda de áreas de alto valor ecológico.

Agricultura e Mar

 
       
   
 

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